A Diretiva da União Europeia sobre Direito de Autor e seu impacto sobre os usuários na América Latina e no Caribe

Este texto foi produzido pela coalizão Al Sur, um um grupo organizado da sociedade civil na América Latina que busca fortalecer os direitos humanos no ambiente digital, e publicado em espanhol aqui. A tradução para o português foi feita por Luã Fergus, voluntário do Creative Commons Brasil. O texto original foi licenciado com uma licença CC BY-SA 2.5 Colombia.

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A Diretiva da União Europeia sobre Direito de Autor e seu impacto sobre os usuários na América Latina e no Caribe: uma perspectiva das organizações da sociedade civil

Na sequência da recente aprovação da Diretiva da União Europeia sobre os direitos de autor no mercado único digital [1], após anos de debates e negociações, manifestamos a nossa preocupação quanto à forma como esta diretiva e a sua futura implementação no mercado afetarão os direitos humanos e a inovação na internet não apenas na Europa, mas também na América Latina e no Caribe.

A diretiva [2] pretende limitar a forma como o material protegido por direitos de autor é compartilhado online, especialmente nas plataformas de redes sociais. Como afirmou a revista Wired: “A Diretiva de Direitos Autorais tornará os sites de plataformas e agregadores online responsáveis pela violação de direitos autorais e, supostamente, redirecionará as receitas das gigantes da tecnologia para artistas e jornalistas.”[3]

Dois artigos foram especialmente controversos. Por um lado, o Artigo 15 direciona os agregadores de notícias, como o Google News, a pagar aos editores pelo uso de fragmentos de seus artigos em suas plataformas. O principal problema deste artigo, de acordo com Carolina Botero, da Fundação Karisma (Colômbia), é que “o pagamento não é apenas para notícias ou sites, mas todo mundo que usa material jornalístico deve pagar”. [4] Por outro lado, o Artigo 17 torna as plataformas online responsáveis pela violação de direitos autorais em seus sistemas, incluindo conteúdo de terceiros, a menos que tomem medidas para filtrar ou eliminar proativamente o material infrator. Como assinalou Mariana Valente, do InternetLab (Brasil), “o artigo 13 não se aplica apenas a música e material audiovisual, que tradicionalmente são indústrias mais organizadas em torno de catálogos, mas também a imagens, textos e qualquer outra propriedade protegida por direitos autorais, o que torna tudo mais complexo ”. [5]

Ainda não está nítido como as empresas de Internet implementarão esta nova diretiva.

No entanto, ao projetar os meios para isso, grandes plataformas que dependem de conteúdo gerado pelo usuário (UGC, na sigla em inglês), como Facebook, Google, Twitter, YouTube e outros serviços semelhantes, provavelmente modificarão seus sistemas algorítmicos para implementar filtros de upload – filtragem de conteúdo antes de ser publicado -.[6] Mesmo que as plataformas menores não tenham uma obrigação rigorosa de filtrar, por um curto período de tempo, elas podem ser mais incentivadas a fazê-lo, pois pode ser a única alternativa para evitar a responsabilidade. Isso pode ter vários efeitos preocupantes inclusive em nosso continente:

  • Os usuários latino-americanos verão sua liberdade de expressão interrompida.

Como o relator especial das Nações Unidas sobre liberdade de expressão, David Kaye, disse em relação a uma versão anterior, mas muito estreita, do Artigo 17, apesar de a lei de direitos autorais ter sido modernizada para adaptá-la aos atuais desafios digitais e futuros, “O artigo 13 da proposta de diretiva parece ter como objetivo levar as plataformas de internet a monitorar e restringir o conteúdo gerado pelo usuário, inclusive no momento de upload. Essa grande pressão para filtrar antes da publicação não é uma resposta necessária ou proporcional à violação de direitos autorais online”.[7]

Estamos profundamente preocupados com o impacto que esta diretiva da UE pode ter na liberdade de expressão dos usuários latino-americanos. Embora o sistema latino-americano de direitos humanos proíba a censura prévia, já que na Internet “o código é a lei”, as decisões tomadas na Europa significarão que os serviços globais começarão a ser projetados de acordo com os marcos legais dominantes. Os filtros serão aplicados em todas as jurisdições como forma preventiva de evitar responsabilidade. 

Portanto, a censura prévia tornar-se-á a regra, alterando nossa estrutura legal sem a nossa participação

  • Filtros automáticos e sua falta de responsabilidade para com os usuários locais.

Filtros automáticos têm sido criticados por duas razões importantes: sua falta de transparência na maneira de trabalhar e tomar decisões; e os numerosos “falsos positivos” incluídos em seus resultados (especialmente quando os algoritmos precisam navegar pelas complexidades das leis locais que têm exceções de direitos autorais e outros usos legítimos, o que é difícil até mesmo para especialistas).

Além disso, ainda não se sabe que tipo de mecanismos de recurso serão utilizados pelas plataformas, o que não é um grande alívio se considerarmos os problemas do sistema atual, e como eles vão responder os usuários afetados na América Latina e no Caribe. Além disso, esses mecanismos não possuem controles de supervisão.

  • Os filtros automáticos facilitam os riscos de vigilância e aumentam a homogeneidade econômica.

Julia Reda, ex-membra do Parlamento Europeu, advertiu que a diretiva exigirá “a instalação do que equivale à tecnologia de vigilância”. [8] Os filtros de upload são, por natureza, uma forma proativa, um pré-exame de cada ato de expressão em uma determinada plataforma, que pode ser coletado, processado e vinculado a determinados usuários para criar perfis.

Como a eurodeputada Julia Reda aponta, devido aos altos custos de desenvolvimento, é provável que os filtros de upload para monitoramento de conteúdo acabem sendo terceirizados para os poucos grandes fornecedores baseados nos EUA que têm a capacidade para fazê-lo. Em consequência, a sua posição no mercado será reforçada e poderão centralizar as informações sobre o comportamento de todos os utilizadores das plataformas de Internet da UE.

A América Latina tem uma história específica e preocupante em relação ao uso de tecnologia de vigilância e não tem garantias legais suficientes para prevenir abusos.

  • Restrições à concorrência e inovação.

Os artigos 15 e 17 teoricamente equilibram os lucros das grandes plataformas que dependem da UCG à custa dos autores e dos direitos autorais da mídia.

No entanto, eles afetarão todo o ecossistema da Internet. [9] Grandes empresas terão os recursos para implementar esses mecanismos (às custas da liberdade de expressão dos usuários), mas provavelmente outros serviços pequenos ou novos terão um aumento em seus custos que pode afetar diretamente seus serviços. sobrevivência econômica. Em outras palavras, para punir os grandes e dominantes agentes, essa medida acabará fortalecendo-os e prejudicando os novos e pequenos atores.

Esta preocupação levou o Parlamento da UE a incluir uma exceção [10]. O texto aprovado do Artigo 17 aplica-se a todas as plataformas com fins lucrativos, exceto aquelas que atendem aos seguintes três critérios extremamente restritos:

(a) Disponível para o público há menos de 3 anos, (b) Volume anual de negócios abaixo dos 10 milhões de euros, (c) Menos de 5 milhões de visitantes únicos mensais.

Segundo a eurodeputada Julia Reda, [11] esta medida não será suficiente porque é muito rigorosa e também porque “todas as plataformas, não importa quão novas ou pequenas, ainda devem demonstrar que fizeram ‘os melhores esforços’ para obter as licenças dos detentores de direitos, como tags de registro, editores de livros e bancos de dados de fotos, para qualquer coisa que seus os usuários possam publicar ou fazer upload, uma tarefa impossível ”.

Isso deveria ser motivo de preocupação para as autoridades locais na América Latina, que na última década vêm implementando políticas públicas e fundos para promover inovadores locais na atual economia da Internet. Novas barreiras de entrada na forma de filtros obrigatórios ou esquemas de licenciamento caros só podem fortalecer os atores tradicionais.

  • Impacto na diversidade de informação e no pluralismo dos meios de comunicação.

Como se pode concluir dos pontos anteriores, a longo prazo, a presente diretiva poria em perigo o futuro da diversidade da informação e do pluralismo dos meios de comunicação social, não só na Europa, [12] mas também na América Latina e no Caribe, pois apenas alguns atores – que já estão bem financiados, consolidados ou dominantes – poderão pagar os custos impostos por essas condições.

No atual contexto de desinformação na Internet e com um ecossistema midiático já afetado em nosso continente, a América Latina e o Caribe devem estar bem conscientes do impacto que essas medidas terão provavelmente em nossas democracias. É essencial que os legisladores locais compreendam que, mesmo de boa fé, a UE propôs um modelo legal que prioriza os direitos de autor sobre os direitos humanos, incluindo a liberdade de expressão. Além disso, essa legislação poderá ter um impacto sobre a diversidade de informações disponíveis, diversidade, pluralismo da mídia e inovação em serviços e empresas.

  • Um modelo incorreto para a legislação local, com apenas algumas novas regras

Os debates e a indignação pública na UE concentraram-se nos artigos 15 e 17 da Diretiva (ex-artigos 11 e 13 nos projetos de lei), mas a sociedade civil europeia trabalhou nos últimos cinco anos para destacar o interesse público em questões como a conquista de direitos mínimos para as atividades educativas digitais em toda a Europa e a melhoria do quadro jurídico das instituições de património cultural. Estas questões chegaram à diretiva.

Em nome das instituições de patrimônio cultural, o representante da Communia, Paul Keller, foi mais otimista com o resultado final nessa área. Para Keller, a Diretiva inclui algumas “melhorias significativas para as instituições de patrimônio cultural que facilitarão a digitalização (massiva) de obras fora de circulação comercial permitirão que as instituições realizem trabalhos de extração de texto e dados em suas coleções e garantirão que cópias digitais de obras em domínio público permanecerão no domínio público».[13]

Outros estão menos entusiasmados com a linguagem finalmente adotada e consideram que o texto final da Diretiva não reflete adequadamente a discussão que os ativistas da educação levaram ao Parlamento da UE. Teresa Nobre denuncia que, devido à pressão de “questões mais importantes”, os acordos alcançados em 2018 no Parlamento “foram destruídos durante as discussões do trílogo, que se realizaram a portas fechadas” e o texto final não correspondeu às expectativas da sociedade civil. [14] O cenário de interesse público na América Latina em relação aos direitos autorais é mais fraco do que na Europa: não há fóruns regionais que possam nos ajudar a mitigar os terríveis efeitos da legislação existente de direitos autorais sobre o acesso ao conhecimento e cultura.

  • A Diretiva é um mau exemplo da relação Estado – Participação Cidadã nos processos legislativos.

O processo legislativo para esta Diretiva na Europa levou cinco anos. Houve uma participação constante e permanente da sociedade civil que, no final, tornou-se particularmente ativa em oposição aos artigos 15 e 17. Mais de cinco milhões de pessoas assinaram a carta contra esses artigos e dezenas de milhares se reuniram em lugares como Alemanha, Polônia ou Portugal. [15] Os agentes minimizaram a mobilização de cidadãos chamando-os de bots e trolls e insistindo que a indignação era motivada pela pressão da indústria que minava as preocupações dos cidadãos reais.

Se a diretiva europeia se tornar um exemplo a ser seguido em nossa região, como alguns já sugeriram [16], como podemos fortalecer o espaço público para promover um debate aberto que não prejudique ou restrinja a participação dos cidadãos?

A América Latina não deve seguir cegamente este exemplo. Encorajamos as autoridades locais, a academia, o setor privado, autores e criadores e a sociedade civil a:

  • Adotar um ponto de vista crítico sobre esta Diretiva e a ouvir e compreender as muitas vozes do mundo que levantaram argumentos críticos em torno desta legislação.
  • Incentivar a pesquisa sobre os efeitos que esta Diretiva pode ter em nossos países e ilustrar/explicar o processo de formulação de políticas para que não sigamos precedentes literais do exterior, entendendo que os padrões estrangeiros às vezes podem ter efeitos diferenciados em outras regiões. 
  • Incentivar discussões sobre direitos autorais, acesso ao conhecimento e como equilibrar criatividade, direitos autorais e liberdade de expressão no ambiente online.
  • A inclusão de tópicos de interesse público na Diretiva poderia ser uma boa prática a ser considerada nos nossos debates regionais.

Este documento [17] foi assinado em 17 de abril de 2019 pelas seguintes organizações:

InternetLab, Brasil (internetlab.org.br)
TEDIC, Paraguai (tedic.org)
Asociación por los Derechos Civiles, ADC, Argentina (adc.org.ar)
Hiperderecho, Peru (hiperderecho.org)
Centro de Estudios en Libertad de Expresión, CELE, Argentina (palermo.edu/cele)
IPANDETEC, América Central (ipandetec.org)
Derechos Digitales, América Latina (derechosdigitales.org)

Notas:

[1] Resolução legislativa do Parlamento Europeu, de 26 de março de 2019, sobre a proposta de diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos direitos de autor no mercado único digital (COM(2016)0593 – C8-0383/2016 – 2016/0280(COD))   
(Processo legislativo ordinário: primeira leitura)

[2] As diretivas da UE são uma forma de legislação que estabelece objetivos que os Estados-Membros devem alcançar. A aprovação deste novo.
A Diretiva será implementada por meio de cada um dos países da União.

[3] O que é o artigo 13? O novo plano de direitos autorais da UE explicado. 15 de abril . https://www.wired.co.uk/article/what-is-article-13-article-11-european-directive-on-copyright-explained-meme-ban

[4] En Europa se mueve el activismo para salvar internet #SaveYourInternet. Karisma. 15 de fevereiro de 2019. https://karisma.org.co/en-europa-se-mueve-el-activismo-para-salvar-internet-saveyourinternet/

[5] A Diretiva sobre Direitos de Autor de União Europeia pode acabar com a internet? InternetLab. 26 de março de 2019.

[6] O comissário da UE, Gunther Oettinger, admite que os sites precisam de filtros para cumprir com o artigo 13. Techdirt. 3 de abril de 2019

[7] A UE deve alinhar a reforma dos direitos autorais com os padrões internacionais de direitos humanos, afirma especialista. OHCHR/EACDH. 11 de março de 2019.

[8] Artigo 13 combinado com os Motivos/as Razões 38 e 39 da proposta de reforma/expansão dos direitos de autor na UE. Julia Reda.

[10] Continuar as batalhas de direito de autor na Europa. El espectador. 23 de março de 2019.

[11] O artigo 13 está de volta, e piorou, não melhorou. Julia Reda. 5 de fevereiro de 2019.

[12] A UE deve alinhar a reforma dos direitos autorais com os padrões internacionais de direitos humanos, afirma especialista. OHCHR/EACDH. 11 de março de 2019

[13] O Parlamento Europeu adota a diretiva de direitos autorais: um impulso para instituições de patrimônio cultural na Europa. Europeana Pro. 26 de março de 2019

[14] A exceção de educação foi destruída durante os Trílogos. Comunia. 27 de fevereiro de 2019

[15] Projeto de lei de direitos autorais da UE: protestos em toda a Europa destacam as divisões sobre planos de reforma. DW. 23 de março de 2019

[16] Direitos autorais na era digital. SIPIAPA. 31 de março de 2019

[17] Documento coordenado por Paz Peña para “Al Sur

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