CC Summit 2019: nossa 1ª participação como novo capítulo brasileiro

por Mariana Valente, coordenadora do CC Brasil

Entre 9 e 11 de maio de 2019, aconteceu em Lisboa o encontro internacional do Creative Commons. É um evento que vem ocorrendo anualmente, e que reúne os capítulos do CC pelo mundo, mas também outras pessoas envolvidas de diferentes formas com o conhecimento e a cultura livre. Foi o primeiro encontro que ocorreu com a Global Network já devidamente instalada, ou seja, o órgão de representação dos capítulos que deve, cada vez mais, assumir a gestão global da rede Creative Commons, como explicamos neste texto, sobre a nova governança da rede CC.

Foto: Sebastiaan Ter Burg. CC BY 2.0

O encontro é organizado em torno de palestras, painéis e workshops, além de eventos sociais. Este ano, tivemos uma brasileira como keynote, na abertura do evento: Adele Vrana, do projeto Whose Knowledge?, falando sobre diversidade e colonialidade no conhecimento.

Foto: Sebastiaan Ter Burg. CC BY 2.0

O CC Summit é uma grande oportunidade de atualização sobre mudanças nas políticas de direito autoral pelo mundo, projetos sendo tocados em conjunto por membros do CC, e tendências e evoluções na rede como um todo. Como participante de vários dos encontros desde 2012, observo algumas tendências recentes: o destaque de sessões sobre gênero e diversidade racial, cultural e regional no movimento de Commons; particularidades de regiões e do sul global nas discussões; e novas formas de se enxergar como movimento e de engajar novas pessoas e comunidades, a partir de uma perspectiva de que a missão do projeto passa por transformações conforme o mundo, e em especial a internet, passam também por transformações.

Cartaz da festa de encerramento do CC Summit. Arte de João Pombeiro com imagens portuguesas em domínio público

A rede global do Creative Commons engaja-se em projetos de diferentes tipos. Alguns membros estão desenvolvendo juntos o CC Certificate, uma formação sobre licenças e práticas abertas que já está sendo oferecida desde 2018 (no segundo semestre devem ser divulgadas as informações sobre o oferecimento para 2020). Alguns membros europeus atuaram intensamente em defender o conhecimento livre no recente processo de reforma do direito autoral na Europa, e estiveram falando sobre seus sucessos e fracassos em diferentes sessões. Um conjunto de membros apresentou a iniciativa Public Domain Awareness, que está em fase de desenvolvimento e visa pensar ações para valorizar o domínio público, o conhecimento e o acesso dele pelo público. Em outras sessões, grupos apresentaram seus projetos e políticas de conhecimento livre. Foi o caso, por exemplo, de representantes da Fiocruz, do Brasil, que apresentaram os resultados até o momento do processo que estão conduzindo por uma política de ciência aberta para a instituição.

 

Reunião de coordenadores de capítulo e do Global Network Council

Também se realizou, no Summit, uma reunião de líderes de capítulo e membros do GNC (Global Network Council), para discussão do que vem e o que não vem funcionando na nova estratégia, e do que os capítulos precisam para funcionar melhor. Como coordenadora do CC Brasil e sua representante no GNC, relatei as últimas ações e como os primeiros meses de um capítulo na nova governança foram ricos em mostrar que projetos e comunidades de conhecimento livre estão muito vivas no Brasil, e que o CC pode ser um projeto de coordenação entre esses grupos, e de oferecimento de suportes específicos e conexão com o restante da rede CC.

Conversamos sobre a necessidade que temos, como capítulos, de ferramentas como e-mails institucionais e repositórios de materiais educativos já existentes, e de suporte ou compartilhamento de de técnicas de gestão de voluntários. Falamos também sobre como o processo de aceitação de novos membros está demorado e precisa ser melhorado, e de como precisamos pensar em formas de obter fundos para nossas atividades, já que na nova estrutura de governança não há organizações que se responsabilizam pelo capítulo local. Como levantar fundos com uma estruturação em rede? Muitas pessoas falaram também sobre a necessidade de conhecimento jurídico dentro dos capítulos. Conhecemos mais uns aos outros, e conectamo-nos regionalmente e globalmente.

Foto: Sebaastian Ter Burg, CC BY 2.0.

As fotos do encontro foram tiradas pelo Sebastiaan Ter Burg, e estão aqui:

https://www.flickr.com/photos/ter-burg/albums/72157708410802765

https://www.flickr.com/photos/ter-burg/albums/72157708381101725

No fim de cada ano, abre a submissão de propostas de painéis e pedidos de bolsas para o Summit 2020, que vai ser em Lisboa de novo. Vamos divulgar a oportunidade por aqui. Esperamos ter muito o que apresentar lá.

 

 

 

O encontro internacional do Creative Commons em 2019: um relato da coordenadora de OpenGLAM no CC Brasil

por Juliana Monteiro

No primeiro dia do encontro do Creative Commons, tive a oportunidade de assistir a uma série de apresentações e participar de uma sessão. Minha impressão foi a de que o dia inicial foi direcionado para engajar as pessoas com o ecossistema do Creative Commons. Para uma novata como eu nos encontros do Creative Commons, foi uma chance de conhecer um pouco mais as vozes por trás da frente particular de OpenGLAM.

 

Abrindo coleções de museus, arquivos e bibliotecas, desde o Sul

Nesse âmbito, vale a pena trazer algumas notas sobre as comunicações que foram feitas por colegas da América do Sul, em sessão especial sobre o tema na região (e que, curiosamente, continha poucas pessoas do hemisfério norte). Entre os debates realizados sobre como tornar as iniciativas OpenGLAM mais conhecidas e operacionalizáveis para todos os tipos de instituição colecionadora – incluindo aqui os Princípios de OpenGLAM, comentados aqui – uma questão ficou clara: no tangente aos países do sul, não se trata apenas de ter mais acesso às tecnologias mais avançadas, mas sim entender para que servem e o que podem, de fato, proporcionar para essa parte do mundo.  Os colegas também destacaram que gestores da região podem ser pouco sensíveis à existência da ideia do “Commons”. E, além disso, há o problema das equipes diminutas e mal remuneradas, que precisam se desdobrar para realizar diferentes tarefas e têm pouco tempo ou estrutura para pensar um planejamento de médio e longo prazo de digitalização e disponibilização online de conteúdos.

Mesa sobre OpenGLAM na América Latina, com participação do CC Brasil. Foto: Irene Guzmán.

 

Uma fala que me marcou muito nesse primeiro dia foi a de Scann, justamente por eu já ter pensado nisso também em diferentes momentos. Scann mencionou que ainda há uma forte representatividade masculina no universo de TI e é esse grupo que se apresenta frente a um universo repleto de mulheres trabalhadoras. Portanto, a dificuldade no diálogo entre as instituições culturais e a indústria da tecnologia da informação passa, também, por uma questão de gênero – e isso afeta diretamente o universo do Creative Commons e do OpenGLAM.

Outro aspecto interessante a ser destacado é que a ênfase em treinamento de pessoal pode ser uma estratégia para que as instituições GLAMs façam declarações mais robustas sobre a abertura dos seus acervos.

Por fim, nesse dia ainda tive a chance de participar de uma sessão sobre visibilidade feminina dentro do Creative Commons e no movimento em prol do conhecimento livre.  Um dos registros mais importantes dessa sessão foi a necessidade de ter mais mulheres em posição de liderança. Assim, será possível talvez ver mais mulheres participando das iniciativas, pois se reconhecerão em pessoas que entendem o que elas passam.

No segundo dia, mais alguns destaques relacionados à área GLAM, que continuaram a reforçar alguns pontos indicados por colegas da América do Sul no dia anterior. Na sessão dedicada a discutir a migração de uma instituição cultural de uma proposta de abertura de acervos para sua transformação digital global, novamente foi destacado que só ter acesso às ferramentas não é suficiente. É necessário também que as pessoas envolvidas no processo tenham as habilidades necessárias para usar as ferramentas.

Também foi destacado que a transformação digital não depende exclusivamente da digitalização de acervos, embora ela seja uma das suas partes importantes. A respeito da digitalização, também foi relatado que as instituições colecionadoras geralmente trabalham com instrumentos muito antigos e inadequados, como escâneres de mesa.

Para completar o cenário complexo, também há uma ausência crônica de sistemas de gestão das coleções, boa conexão de internet ou, na existência desta, não há autonomia da instituição sobre seu próprio ambiente tecnológico. Deste modo, elas acabam ficando, em muitos casos, impedidas de realizar as modificações ou instalações que precisam, no tempo que precisam, por dependerem de estruturas maiores e não sensíveis às suas demandas.

Cumpre destacar que a situação relatada nos últimos dois parágrafos não é diferente do que foi diagnosticado pelo CETIC, em sua pesquisa TIC Cultura. De acordo com as pesquisas de 2016 e 2018, as instituições brasileiras de memória passam por dificuldades semelhantes.

Sendo assim, para a transformação digital acontecer, os palestrantes destacaram que as instituições colecionadoras precisam passar por uma série de etapas. E, muitas vezes, elas não conseguem cumpri-las.

A esse respeito, acredito também que as instituições culturais de memória terão mesmo dificuldade em cumprir etapas em um processo contínuo de amadurecimento. Vejo todas realizando, na verdade, várias ações ao mesmo tempo, pois essa é a dinâmica de trabalho que geralmente existe – particularmente, na América do Sul. Ou seja, em uma realidade institucional muitas vezes marcada por avanços que se dão com base em projetos financiados, com cronogramas apertados e equipes temporárias, as instituições precisam se virar como podem e no tempo que têm.

Do mesmo modo, o desafio para pensar uma transformação digital nas instituições GLAM deveria considerar o seguinte: que as instituições de memória podem até ganhar os financiamentos, mas precisam saber muito bem o que fazer com os recursos que recebem. Assim, correrão menos riscos de criar projetos ou plataformas que são pouco sustentáveis com o fim da iniciativa ou que podem ferir os direitos autorais associados às suas coleções.

 

Digitalização aberta de acervos: a estratégia de começar pequeno

Em outra sessão do Summit, também sobre OpenGLAM, foi destacado que pequenas instituições também podem criar grandes narrativas a partir de seu acervo – o que pode gerar um engajamento com comunidades locais muito grande.

Contudo, também foi ressaltado que a divulgação de tais iniciativas ainda é muito tímida. E que players que poderiam colaborar diretamente com isso, como a Wikimedia Foundation, acabam focando seus esforços de comunicação em projetos maiores. Para reverter tal situação, foi sugerido que as instituições menores precisam fazer mais pressão de fora para que a Fundação passe a dar mais atenção ao que realizam, colaborando para sua maior difusão.

 

O CC na América Latina: de estratégias com governos a políticas institucionais de acesso aberto

Uma última sessão que gostaria de destacar foi a dedicada à participação do Creative Commons nos governos locais da América Central (e em alguns países da América do Sul).

As palestrantes destacaram a importância da realização de workshops focados muito mais no aspecto filosófico do acesso aberto e do conhecimento livre do que em questões práticas do Creative Commons. Em tais workshops, também foi possível sugerir para que as pessoas lessem as licenças em outros momentos, para então voltar com dúvidas mais específicas. Tal abordagem, conforme as palestrantes, costumou funcionar melhor do que tentar explicar todas as questões do universo jurídico associado às licenças durante os encontros.

Outro ponto que também foi destacado foi o fato de que trabalhar com os governos da região pode ser uma “montanha russa”. Isso se dá pelo fato de que as organizações pró-conhecimento livre ficam sempre à mercê de um contexto com muitas camadas e muitas diferenças entre as licenças adotadas pelo sistema CC e pelos governos locais.

Entretanto, a representante do Panamá comentou que o país passou pela reforma do direito autoral e que hoje o Ministério do Comércio está trabalhando cada vez mais com exceções previstas na lei. A representante da Colômbia explicou que o Creative Commons local não possui uma grande relação com o escritório de direitos autorais do país. Além disso, o capítulo fica muito focado em discutir as licenças do próprio sistema Creative Commons. Desse modo, ficou claro ainda o enorme desafio que o CC ainda possui na região, não só do ponto de vista prático, mas também político e institucional.

Para terminar o dia, tive a oportunidade de assistir à comunicação de Paula Xavier e Paulo Guanaes sobre a política de ciência aberta adotada pela Fundação Oswaldo Cruz. Um dos pontos que posso destacar acerca da fala de ambos é que tal política é um interessante caso de sucesso de desenvolvimento institucional de diretrizes para compartilhamento de dados de pesquisa em saúde pública. Isso por si só é importante pois é algo que ainda é, de certa forma, inédito no Brasil.

Ainda temos poucas instituições que conseguem alcançar esse nível de consenso interno acerca do que liberar ou não para terceiros. Outro ponto de destaque é a preocupação da Fundação em delimitar até onde tal liberdade vai. Tal delimitação é algo que me marcou particularmente. O cuidado da Fundação em não liberar determinados dados de pesquisas que realiza diante de um cenário de profunda assimetria científica em relação a entidades, por exemplo, do hemisfério norte, pode significar um caminho alternativo para falarmos de dados abertos na América Latina. Talvez isso faça mais sentido para nossas instituições – e aí não só as da área de saúde – por ser mais viável em termos operacionais, financeiros e estratégicos.

No dia seguinte, último do evento, continuei a acompanhar a discussão sobre a relação dos países da América Latina com o CC. Representantes de Colômbia, Argentina e México comentaram a atuação dos capítulos dos quais fazem parte.

Sessão sobre capítulos da América Latina. Foto: Juliana Monteiro, CC BY 4.0.

A representante do capítulo mexicano apresentando suas estratégias de renovação e seus sucessos. Os outros representantes destacaram que a mudança sugerida pelo CC global aos capítulos locais foi confusa e difícil, dando a impressão de que houve uma desarticulação de tudo que havia sido construído até então. Houve uma fala ainda em favor de que a GCN e o QG do CC devem servir os capítulos e não o contrário, e que essa seria a única forma de garantir a capilaridade do CC a nível global.

Outros participantes também destacaram que a demanda por reativação das redes locais do CC é algo que precisa acontecer. Mas, com a mudança promovida pelo CC Global há uma burocracia em inglês difícil de ser compreendida pelas pessoas que se interessam em participar.

Também foi ressaltada a importância da retomada das agendas digitais nos países da região, o que vem perdendo fôlego e espaço nos últimos anos. Com isso, também foi dito que a articulação entre os países deve ser reconstruída, para colaborar na retomada do crescimento da cultura do compartilhamento.

 

Projetos wiki e instituições de memória

Por último, vale destaque para uma apresentação que vi no último dia e que trouxe algumas provocações que me fizeram pensar em algumas questões que trouxe em um artigo meu, recentemente publicado. A comunicação foi feita por um profissional da Holanda e era relativa à devolução dos dados dos projetos Wikimedia de volta para as instituições GLAM. Ele destacou que as instituições culturais acabam usando muito pouco as informações produzidas por terceiros, como aquelas que são criadas em projetos colaborativos como a Wikipédia.

Em uma pesquisa feita com instituições europeias e lançada no início de 2019 foi constatado que a maioria das GLAMs usa apenas informações produzidas pelo próprio setor, como tesauros e outros tipos de vocabulários controlados. Outras acabam recebendo informações diretamente do seu próprio público, que se comunica por e-mail, telefone etc.

A pesquisa também mostrou que as GLAMs confiam pouco em projetos como o Wikimedia Commons e no tipo de informação disponibilizada pelo repositório.  Com isso, a recomendação deixada pelo palestrante foi a de mudar a posição do repositório de algo “crowdsourced” para se tornar uma autoridade para o setor. Para isso, seria necessário mudar a forma de pensar da comunidade Wikimedia sobre os projetos.

Acredito que mudar a forma de pensar de toda uma comunidade sobre um determinado uso de projetos Wikimedia – no caso, o uso pelas instituições GLAM – seria algo, no mínimo, desafiador. Todavia, penso que as instituições culturais também precisam mudar sua forma de pensar. Não sei se tornar os projetos Wikimedia em produtores de catálogos de autoridade ou eles próprios se tornarem autoridades para a área de patrimônio cultural é algo que vai resolver o problema de retorno dos dados, caso a próprias instituições não se posicionarem de forma diferente. A abertura, portanto, deve funcionar dos dois lados.

Termino por aqui meu relato, destacando a grande oportunidade que foi a de ter três dias para mergulhar mais a fundo no universo CC. Foi importante conhecer a visão dos colegas da América Latina sobre a organização e entender, de mais perto, quais desafios são semelhantes e quais são diferentes – principalmente para a área GLAM. Ainda compreendo que há um grande caminho a ser percorrido para que o diálogo entre profissionais do hemisfério norte e hemisfério sul se equalize um pouco mais. Acredito também que, no que se refere à expansão das iniciativas OpenGLAM na América Latina, o esforço ainda reside na difusão da filosofia do Commons e no treinamento, em língua local. Sem isso, fica ainda mais complicado trazer mais agentes para uma discussão que se pretende igualitária (ou em processo de construção para tanto).

Mariana Valente e Juliana Monteiro, do CC Brasil, no Summit. Foto: Sebaastian Ter Burg, CC BY 2.0.

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